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Sérgio Luciano

Liderar a serviço de si? Um risco real e nada legal

ECOA

27/11/2019 04h00

Na última publicação que fiz, contei sobre as três primeiras armadilhas comuns de se cair quando estamos em papéis de liderança. Hoje, conto sobre a quarta e a quinta armadilhas.

  1. Usar poder para resolver a baixa autoestima

O poder e privilégio que um papel de liderança nos dá é como uma droga. É gostoso e faz bem ter pessoas nos ouvindo e vindo até nós. Saber que pessoas nos admiram, tê-las ansiosas para ter um tempo conosco e ver nossa voz tendo força contribuem para nos sentirmos importantes. Se temos alguma dúvida de nossas capacidades ou nos sentimos inadequados, logo isso se dissolve diante do afã dos admiradores. Nos fundimos e confundimos com o papel de liderança que exercemos.

Com o tempo, o papel que representamos e as impressões das pessoas ao redor passam a ser a melhor estratégia para aumentar ou manter nossa autoestima. Então, sem perceber, deixamos de nos preocupar com nosso desenvolvimento pessoal e emocional. O papel que representamos nos traz o conforto emocional necessário para viver.

Então, não nos imaginamos sem esse papel. Lutamos para mantê-lo. Muitas vezes, privilegiando nosso interesse próprio em detrimento dos outros e dos interesses da organização. E aí você pode imaginar os possíveis abusos de poder para se manter no papel em que estamos.

Dicas para desenvolver-se emocionalmente e exercer a liderança com responsabilidade:

  • Busque autoconhecimento. Descubra e trabalhe os pontos em que você percebe que podem levá-lo a usar o papel que exerce na organização em benefício próprio apenas, esquecendo do seu compromisso com ela.
  • Preste atenção em outras áreas da vida, para além do trabalho. Espiritualidade, relações amorosas, família, diversão e amigos, momentos de relaxamento. Ocupe seu tempo com ações que cuidam dessas outras áreas da vida. Quanto maior o grau de responsabilidade profissional, maior o risco de o resultado do trabalho passar a ser uma compensação do baixo bem-estar fora do trabalho.
  1. Comprar a própria ideia

Em algum momento, pode ser que comecemos a criar um ambiente onde nossas ideias não podem ser desafiadas. Algumas vezes podemos fazer isso, conscientes ou não, como forma de nos protegermos e mantermos nosso poder e influência. Tudo que divergir do que acreditamos pode chegar como uma ameaça que desafia nossa autoridade. Sendo assim, alimentar nossas próprias crenças se pautando apenas naquilo que confirma o que já pensamos parece ser uma boa saída para manter-se seguro.

Com o tempo, vamos deixando de conviver cada vez mais com ideias e opiniões desafiadoras e começamos a viver numa bolha só nossa e de pessoas que nos seguem, perdendo a conexão com a diversidade existente na realidade ao redor. Quanto mais reforçamos nossas próprias ideias, menos abertos nos tornamos a outras opiniões e possibilidades. Passamos a liderar para nós mesmos, esquecendo que estamos ali a serviço da organização. E, a depender do nível de influência que nosso papel tem na organização, isso impacta diretamente na forma como ela se relaciona com seu entorno.

Quando não há espaço para o divergente, possivelmente começa a existir um ambiente fértil para o autoritarismo. Afinal, quando o diferente surge e não estamos a fim de escutar, a tendência é querer abafar essa voz. Com o tempo, pode ser que estejamos tecendo relações que se baseiam no medo, e máscaras vão se criando mais e mais. E, quando as pessoas não podem estar inteiras com tudo o que têm e são, então também se reduz sua disposição em contribuir com a organização. Desmotivação, baixo rendimento e rotatividade de colaboradores podem ser sintomas dessa liderança autocentrada.

Dicas para cultivar um ambiente propício a divergências e para saber lidar com isso:

  • Desconstrua (em você primeiro, depois no grupo) a crença de que, quando alguém diverge do líder ou de outros no grupo, esta pessoa é a perturbadora da estabilidade. Ainda que a manifestação surja a partir da voz de uma pessoa, ela provavelmente verbaliza algo que está também presente em outras.
  • Fale abertamente da importância de escutar todas as vozes presentes e ressalte que esse é o caminho para espaços de confiança e liberdade para cada pessoa existir por inteiro. Quando podemos estar inteiros com o que somos, aumenta nossa disposição em contribuir.

Percebeu-se caindo em alguma destas armadilhas? Que ótimo! Talvez essa seja uma boa hora para escolher fazer diferente.

Na próxima publicação falarei sobre as últimas três armadilhas comuns em papéis de liderança. Então, até breve!

Sobre o autor

Sérgio Luciano é empreendedor e atua com a promoção da empatia e diversidade como caminho para a construção de relações mais saudáveis. Intrigado pela complexidade das relações de poder e privilégio numa sociedade, tem se aprofundado nesse tema pelo olhar Processwork, uma abordagem terapêutica derivada da psicologia junguiana voltada para mediação de conflitos, facilitação de grupos e autoconhecimento. Também é especialista em comunicação não-violenta e atende organizações e pessoas físicas no Brasil e no exterior.

Sobre o blog

Criar condições para um mundo mais humano e acolhedor para todas e todos passa também por ressignificar as relações no ambiente de trabalho e entre organizações e sociedade, buscando novas formas de produzir e se relacionar. Às vezes essas novas possibilidades são desafiadoras às nossas crenças e ao sistema atual, mas nem de longe são impossíveis. Tudo começa a partir da escolha individual de mudar hábitos, visões de mundo e comportamentos.