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Sérgio Luciano

O que ação de CEO que reduziu salário em 93% tem a ver com Justiça Social

ECOA

11/03/2020 04h00

Esses dias conheci a história de Dan Price, um americano dono de uma empresa de pagamentos que em 2013 resolveu tomar uma decisão audaciosa: imediatamente cortar seu salário de 83 mil dólares mensais para 6 mil dólares mensais, hipotecar suas duas casas, vender todas as suas ações e esvaziar suas contas de aposentadoria. Dessa forma, ele poderia, nos próximos três anos que se seguiriam, aumentar o salário de todos os funcionários para que todos ganhassem, no mínimo, esse mesmo valor de 6 mil dólares mensais.

Para ter uma ideia da mudança promovida por Dan, no estado de Washington DC, onde há a o maior salário mínimo prefixado em 2020, o mínimo mensal tem um valor médio de 2,6 mil dólares. E, segundo estudos os economistas Daniel Kahneman e Angus Deaton, vencedores do prêmio Nobel, um salário de 6,25 mil dólares mensais é o valor médio que permita um cidadão americano ter bem-estar emocional.

Porém, o que mais me chamou a atenção na história de Dan e da Gravity Payments não foi essa decisão radical quanto aos salários na empresa, mas um dos estopins para sua decisão.

Somos todos parte do problema, e da solução

Certo dia Dan perguntou a uma funcionária como ela estava, pois lhe parecia que algo a incomodava. Porém, recebeu uma resposta inesperada: "Você está me roubando". E na tentativa de continuar a conversa, ainda escutou: "Eu sei que suas intenções são ruins. Você se gaba de como é financeiramente disciplinado, mas isso se traduz em eu não ganhar dinheiro suficiente para levar uma vida decente".

Para Dan, essas palavras chegaram como um choque. Foram dolorosas. Olhando pra dentro, ele percebeu que o medo que tinha diante da crise pela qual passou durante a Grande Recessão continuava a influenciar a forma como encarava as finanças e a política salarial da empresa, ainda que tivesse se recuperado e continuasse a crescer.

Quantas pessoas, nessa posição, acolheriam a acusação dessa funcionária e buscariam encontrar sua responsabilidade diante dela? Quantas tentariam 'dar-lhe uma lição' e discursariam sobre liberdade de escolher onde trabalhar, caso não estivesse contente? Quantas tentariam minimizar a situação, dizendo que ao menos ela tem um emprego? E você, como reagiria diante dessa provocação?

Dan encontrou sua parte de responsabilidade nessa acusação. E, desde aquele momento, escolheu um caminho de transformação que culminou na decisão de aumento substancial dos salários de todos na empresa, junto com a redução do seu.

Não é sobre ser bonzinho e altruísta, é sobre justiça social

Dan reconheceu o poder e o privilégio que tinha por ser fundador e presidente da Gravity, e o retorno financeiro que essa posição lhe trazia. Também reconheceu os impactos de suas escolhas enquanto presidente, tanto no seu estilo de gestão como na política salarial dos funcionários. A partir dessa consciência, ele tinha uma decisão a tomar. E essa decisão passava, antes de tudo, por um ajuste de perspectiva. Um desafio às suas crenças do que significava resultado financeiro e prosperidade.

De fato, existia uma grande assimetria ali, com ele recebendo um salário quase 30 vezes maior que o piso salarial até então praticado pela Gravity. E uma vez entendendo que para que aquela funcionária, e todos os outros, tivessem um aumento em seu nível de bem-estar, ele precisaria fazer ajustes financeiros na empresa. Assim, Dan decidiu por, conscientemente, abrir mão do benefício financeiro pelo privilégio que tinha, dentre outras mudanças. O que nos leva a um terceiro ponto.

Para todos ganharem, alguém precisa perder

Sim, alguém precisa perder. Mas, espere! Segura as suas críticas aí, caso elas tenham surgido. Quando digo perder, não é perder tudo. Tampouco renunciar a todos os privilégios (ou benefícios) que tem, mas sim revê-los.

No caso de Dan, foi o salário de 1 milhão de dólares anuais. E suas economias e ações que comprou no passado. Naquele momento, diante da decisão que tomou, era aquilo do qual estava disposto a abrir mão. Para outras empresas ou pessoas, podem ser outras cifras, outras medidas. Cada um sabe onde o calo aperta e onde estão seus limites. E o quanto estão dispostos, ou não, a desafiar pressupostos que carregam.

E, que merda é perder. Eu não quero. Quem o quer? Pode soar até injusto, algumas vezes.

Porém, nem sempre o mais justo, olhando pro todo, é aquilo que é o mais confortável para mim. Às vezes é preciso perder algo individualmente para ganharmos coletivamente. E, quando decidimos conscientemente do que estamos dispostos a abrir mão em prol do coletivo, temos um baita trabalho interno de aceitação e transformação pessoal, de acolhimento das dores oriundas dessas perdas.

Essa é uma decisão audaciosa. Hoje ainda, poucos estão dispostos a dar esse passo. Nem por isso essa decisão deixa de se fazer necessária para uma sociedade mais justa. O que nos leva ao meu último ponto.

Mais que atitudes, tudo começa na mudança de paradigma

Por fim, não estou glorificando a atitude de Dan Price. Tampouco dizendo que todos devemos ser iguais a ele. Aqui me cabe o papel de provocador. De cutucar um modelo de gestão vigente, que prioriza uma distribuição assimétrica, baseando-se na premissa de que salários mínimos previsto em lei são mais que o suficiente, só por estarem de acordo com obrigações legais.

Sim, sei também que o buraco é muito mais embaixo. Cada um sabe as dores e desafios de empreender, de manter um negócio que seja financeiramente sustentável. De estar em posições de gestão e tomar decisões complicadas que, muitas vezes, trazem consigo a impopularidade. E que 'mais dinheiro' é a contrapartida principal para esses esforços, sendo uma das justificativas para assimetrias salariais.

Aliás, não acho errado diferenciações salariais e maiores ganhos para pessoas que assumem responsabilidades maiores. Não acho errado quem investiu dinheiro num negócio receber retorno financeiro pelo risco que teve ao colocar seu patrimônio financeiro a serviço desse negócio. Longe de mim reivindicar o papel de regulador das ações individuais e dizer o que funciona para fulano ou ciclano. Do contrário, meu desejo é que cada pessoa escolha aquilo que lhe faz sentido, diante de suas crenças.

E, por isso, minha esperança nessas provocações é suscitar movimentos que contribuam para escolhas conscientes de fazer diferente. A um ajuste no sistema de crenças e mudanças comportamentais, que levem a mudanças estruturais. Não só de políticas salariais, mas de uma profunda mudança na forma como olhamos para o significado de suficiência e bem-estar, para as métricas de sucesso de uma empresa.

Os resultados colhidos pela Gravity – como melhora na produtividade, aumento da receita e maior retenção de funcionários – mostram que uma melhor distribuição de renda e prosperidade do negócio podem andar juntas. Que assimetrias podem ser questionadas e reduzidas. Que, na palavra de uma das funcionárias da Gravity: "quando dinheiro não é a principal preocupação de alguém, é mais fácil se apaixonar pelo que lhe motiva". E que salários mais justos representam aumento substancial na qualidade de vida e bem-estar das pessoas.

E se eu acredito que todas as empresas vão ser assim, ou mudar por amor? Não! Mas, se as pessoas e empresas que acreditam nessa transformação não o fazem e não falam exaustivamente sobre isso, quem mais o fará?

O caminho é longo e árduo, mas deixar de buscar essas mudanças e falar sobre esse tema, não é uma opção.

Quer saber mais sobre Dan e a Gravity Payments? Indico este artigo aqui.

Sobre o autor

Sérgio Luciano é empreendedor e atua com a promoção da empatia e diversidade como caminho para a construção de relações mais saudáveis. Intrigado pela complexidade das relações de poder e privilégio numa sociedade, tem se aprofundado nesse tema pelo olhar Processwork, uma abordagem terapêutica derivada da psicologia junguiana voltada para mediação de conflitos, facilitação de grupos e autoconhecimento. Também é especialista em comunicação não-violenta e atende organizações e pessoas físicas no Brasil e no exterior.

Sobre o blog

Criar condições para um mundo mais humano e acolhedor para todas e todos passa também por ressignificar as relações no ambiente de trabalho e entre organizações e sociedade, buscando novas formas de produzir e se relacionar. Às vezes essas novas possibilidades são desafiadoras às nossas crenças e ao sistema atual, mas nem de longe são impossíveis. Tudo começa a partir da escolha individual de mudar hábitos, visões de mundo e comportamentos.