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Sérgio Luciano

Privilégios, vantagens e acesso a bem-estar

ECOA

18/03/2020 12h19

Privilégios. Vantagens. Benefícios que tenho em decorrência de minha condição atual. Podemos dar outros nomes. A gramática é o que menos quero me ater aqui.

Estas vantagens são condições que influenciam, direta ou indiretamente, minha vida e meu bem-estar. Em diversos contextos. Contribuem para eu ter facilidade no acesso a recursos que preciso, que não necessariamente outras pessoas teriam. Ao menos não com a facilidade que tenho.

Olhando para a minha história, eu diria que poder falar 4 idiomas é um privilégio. Ou vantagem. Que contribui para, por exemplo, ter acesso a conhecimentos em diversos idiomas e que ainda não estão disponíveis em português. O que contribui para meu desenvolvimento pessoal.

Inclusive, é uma das vantagens que me permitiu fazer um curso entre janeiro e fevereiro de 2019, nos Estados Unidos. Curso este que aborda justamente o tema sobre o qual escrevo agora.

Ter nascido em uma família de classe média, ter meu pai militar e viver ao menos 20 anos da minha vida em bases militares, é outro privilégio.

Nunca me preocupei com segurança. Cuidados médicos de primeira linha. Educação de qualidade. Ser homem, heterossexual (se você acha que isso não é privilégio, basta olhar para o número de mortes e agressões a mulheres e homossexuais, simplesmente pelo seu gênero ou orientação sexual).

Apesar de não ter um pai tão presente fisicamente e com uma série de problemas familiares, tive uma mãe que segurou a barra durante toda a minha infância, estando sempre lá para me apoiar.

Toda essa tranquilidade que tive para "crescer" como indivíduo me apoiou a desenvolver resiliência psicológica para lidar com as dificuldades familiares (violência doméstica de ordem física e emocional por longos anos) que levaram à separação de minha mãe e meu pai, bem como os impactos posteriores desta separação.

Existe também a questão racial. Por mais que tenha traços africanos e me considere negro (com pele clara), 90% do tempo não passo pelas mesmas dificuldades que outras pessoas negras de pele mais escura (vista a complexidade de questões envolvendo colorismo no Brasil).

Calma, meus méritos, ou influência pessoal, não ficam de fora. É fato que existe o fator Sérgio também. O esforço pessoal para estudar e aprender. Não só na escola e faculdade, mas para ter força de buscar por conta própria aquilo que me fazia sentido, meus sonhos. Ainda que no sentido contrário das expectativas familiares de eu me tornar militar e ter 'uma boa vida' num cargo público. Minha persistência diante das dificuldades que surgem.

Tem tanta coisa mais que poderia listar, mas estas penso que bastam para ilustrar.

A complexidade para além do mérito individual

Veja, não quero demonizar os méritos individuais. Acho que são válidos e precisam ser reconhecidos e honrados. Porém não acho sensato supervalorizá-los.

Acho importante honrar que a vida é coletiva e que, por onde passamos, influenciamos e somos influenciados pelo meio. E que o meio é um fator de peso nas experiências de cada indivíduo. Alguns tem um poder pessoal que transcende a adversidade. Outros, não. A complexidade do viver não pode ser reduzida a um 'se eu consegui, você consegue'.

Também não quero demonizar seus e meus privilégios. Ou vantagens. Benefícios.

Ora, se existem, nada mais importante que acolher e honrar essa possibilidade de acesso que contribuem direta e indiretamente para nosso bem-estar. Que abre portas e ilumina caminhos.

Porém aqui cabe um ponto de atenção: o mundo é maior que nosso umbigo e nossa bolha social. Nem todos têm o privilégio, ou acesso, a uma boa educação, saúde e alimentação. Remuneração que garanta subsistência. Saneamento básico. Família estruturada. Tranquilidade para pensar e escolher, sem ter que matar um leão por dia para sobreviver.

O que para uns é natural, para outros é um sonho distante. Ou poderia dizer que existe gente muito privilegiada. Outras menos. Algumas, quase nada. Outras ainda, com risco diário de morte pelas suas condições atuais de existência.

Menos culpa, mais responsabilidade e um pouco de desconforto

Você já parou para pensar nos benefícios que tem na sociedade?

Advindos de sua cor de pele. Gênero. Orientação sexual. Etnia. Grau de instrução. Cargo que ocupa numa empresa. Práticas religiosas. Nível de instrução. Domínio de idiomas. Condições físicas. Biotipo. Local onde mora.

Características que no contexto social em que vivemos levam para as margens ou para os céus. Inclui ou exclui. Dita quem tem direito a existir. Prende. Solta. Silencia. Dá voz.

Além disso, como é sua capacidade de lidar com adversidade? E a resiliência que adquiriu na superação de problemas do passado? Você conseguiu encontrar um propósito de vida?

Tudo isso influencia na forma como cada pessoa experimenta a vida.

Veja. Não estou te culpando pelos teus privilégios. Tampouco querendo me tornar mártir a partir dos meus.

Também não estou dizendo que você deve fazer algo pelo outro. Que deve abrir mão de alguma coisa. Acredito na liberdade de escolha. E na possibilidade de escolhas conscientes, que encontrem equilíbrio entre cuidar de mim, cuidar do outro, cuidar de questões sistêmicas.

Quero ainda compartilhar, com você que também percebe ter muitos privilégios, o desconforto de ver o tamanho dos benefícios que tem e o fato de poder escolher com o que se preocupar; e saber que há um universo de pessoas em que a única escolha que têm é fazer de tudo pra viver mais um dia.

Com isso, quero deixar uma semente de reflexão:

– Será que é possível você usar parte do poder que seus privilégios lhe conferem, para contribuir com uma sociedade mais justa e equânime? Se sim, como?

E, junto dessa reflexão, faço um convite para ação.

Seja com tempo. Seja com dinheiro. Seja com sua energia de vida. Trabalho. Seja como for.

Não é sobre ajudar. Não é sobre caridade. É sobre se reconhecer parte da equação.

E se a nós é dada a possibilidade de somar e multiplicar, que possamos também, cada vez mais, dividir e compartilhar. Seja tempo, seja capital financeiro, seja capital social, seja o que for.

Há quem pense que está perdendo. De fato, talvez o seja, olhando só pro individual. E talvez, para mudanças no sistema atual, uma dose de perda individual é necessária para aumento no bem-estar social.

Agora, a escolha do que compartilhar, e onde estaria disposto a perder para outros também ganharem, só você pode fazer.

Sobre o autor

Sérgio Luciano é empreendedor e atua com a promoção da empatia e diversidade como caminho para a construção de relações mais saudáveis. Intrigado pela complexidade das relações de poder e privilégio numa sociedade, tem se aprofundado nesse tema pelo olhar Processwork, uma abordagem terapêutica derivada da psicologia junguiana voltada para mediação de conflitos, facilitação de grupos e autoconhecimento. Também é especialista em comunicação não-violenta e atende organizações e pessoas físicas no Brasil e no exterior.

Sobre o blog

Criar condições para um mundo mais humano e acolhedor para todas e todos passa também por ressignificar as relações no ambiente de trabalho e entre organizações e sociedade, buscando novas formas de produzir e se relacionar. Às vezes essas novas possibilidades são desafiadoras às nossas crenças e ao sistema atual, mas nem de longe são impossíveis. Tudo começa a partir da escolha individual de mudar hábitos, visões de mundo e comportamentos.