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Sérgio Luciano

Você tem fome de quê?

ECOA

17/10/2019 09h56

Você sabe de onde vem o seu alimento? Quem são as pessoas envolvidas no seu cultivo e as condições de trabalho delas? Qual o caminho que o alimento segue até chegar à sua mesa?

Entre 70% e 80% dos alimentos que consumimos são produzidos em pequenas propriedades rurais. Ou seja, são oriundos de agricultura familiar.

Quando vi esse dado pela primeira vez, em meados de 2015, foi um choque. Durante praticamente trinta anos de minha vida, minha única preocupação era saber qual mercado mais próximo teria os alimentos necessários para saciar minha fome. Após o choque, um incômodo. Muito bem traduzido pelas palavras de Anna Lappe, autora e educadora americana:

"Toda vez que você gasta dinheiro, está dando um voto ao tipo de mundo que deseja ver"

Esse incômodo se transformou em curiosidade. Comecei a me perguntar estas mesmas perguntas do começo do texto. E para responder a estas perguntas, comecei a pesquisar.

Nestas pesquisas, passei a ter mais consciência sobre a ineficiente logística para os alimentos chegarem até nossas mesas; o desperdício de alimentos entre transporte e comercialização; a desvalorização da mão-de-obra dos agricultores familiares; os danos diretos que os agrotóxicos causam em agricultores, no meio ambiente e nos consumidores.

Com o tempo, me decidi: quero encontrar caminhos para uma alimentação livre de agrotóxicos, que valorize o agricultor familiar, respeite o meio ambiente e contribua para a regeneração do planeta.

Mas como?

As comunidades que sustentam a agricultura (CSA)

Nessa busca por novas possibilidades encontrei as "comunidades que sustem a agricultura" (CSA). Um conceito que surgiu nos Estados Unidos nos anos 80 e chegou ao Brasil em 2011.

A primeira coisa que me encantou neste conceito foi a ideia de desenvolver um modelo agrícola no qual as fazendas e seus trabalhadores têm uma renda justa e garantida mensalmente e são apoiados no processo de transição para uma agricultura ecológica.

Depois, descobri que para formar uma CSA era necessário um grupo de pessoas e um agricultor familiar dispostos a se aventurarem numa construção coletiva. Conversarem e decidirem sobre: a quantidade de alimentos necessária para atender às famílias envolvidas com a CSA; o valor financeiro que cuide do agricultor e sua família; os custos e investimentos envolvidos para a produção agrícola; e qual valor mensal cada família investirá para essa produção acontecer.

O caminho começou a se abrir. Então, decidi me adentrar e conhecer mais.

Quando interesses comuns se encontram, a mudança acontece

Em 2017 encontrei um grupo de pessoas e um casal de agricultores em minha cidade que também se interessaram pela ideia de formar uma CSA. Dedicamos os primeiros meses a encontros e conversas entre nós (consumidores) e um casal de agricultores. Era importante nos conhecermos mais e compreendermos as expectativas de cada um para esta relação. Cada um se encantou com a ideia da CSA por um sonho individual, mas para ela nascer era importante, juntos, construirmos nosso sonho coletivo.

Um grupo que começou com cerca de 6 famílias e o casal de agricultores e conta atualmente com uma média de 36 famílias envolvidas nesse movimento.

Compromisso, confiança e cuidado mútuo

Tenho aprendido na CSA a importância do cuidado coletivo para ser um projeto sustentável para todas e todos. Uma destas mudanças foi começar a me perceber não mais como consumidor, mas como co-agricultor.

Temos um compromisso anual com a CSA, que garante aos "nossos" agricultores uma segurança financeira e dinheiro suficiente para fazerem aquilo que gostam: cuidar da terra. Cuidar com respeito e sem uso de agrotóxicos. Regenerá-la, reflorestando o sítio onde vivem.

Também compartilhamos a abundância e escassez no processo. Em momentos onde a produção é afetada (por fortes chuvas ou estiagem, por exemplo), recebemos uma quantidade menor de alimentos. Se a produção é abundante, podemos compartilhar este excedente entre o grupo ou com outras pessoas.

A mudança também está nas "pequenas" coisas

Talvez, numa escala global, pouco importe o fato de 36 famílias e um casal de agricultores escolherem viver uma relação que vai além da relação de consumo e troca financeira que estamos habituados. E nem tenho expectativa que este seja o mais novo modelo disruptivo e deva ser a moda da vez.

Minha esperança é que, ao fazer escolhas mais conscientes em meu cotidiano, que levem em conta o cuidado comigo mesmo, com o outro e com o planeta, estou contribuindo com a criação de um mundo mais humano e mais acolhedor. Começando no quintal de casa. Com o que está ao meu alcance.

Essa esperança se renova e aumenta ao saber que já existem mais de 100 CSAs ao redor do Brasil e outras dezenas que estão em processo de formação.

Qual voto você está disposta ou disposto a dar para o mundo que você deseja ver? E o que esta experiência e modelo propostos pela CSA tem para te ensinar e inspirar?

Sobre o autor

Sérgio Luciano é empreendedor e atua com a promoção da empatia e diversidade como caminho para a construção de relações mais saudáveis. Intrigado pela complexidade das relações de poder e privilégio numa sociedade, tem se aprofundado nesse tema pelo olhar Processwork, uma abordagem terapêutica derivada da psicologia junguiana voltada para mediação de conflitos, facilitação de grupos e autoconhecimento. Também é especialista em comunicação não-violenta e atende organizações e pessoas físicas no Brasil e no exterior.

Sobre o blog

Criar condições para um mundo mais humano e acolhedor para todas e todos passa também por ressignificar as relações no ambiente de trabalho e entre organizações e sociedade, buscando novas formas de produzir e se relacionar. Às vezes essas novas possibilidades são desafiadoras às nossas crenças e ao sistema atual, mas nem de longe são impossíveis. Tudo começa a partir da escolha individual de mudar hábitos, visões de mundo e comportamentos.