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Sérgio Luciano

O que meu melhor amigo me ensinou sobre liderança e estar a serviço

ECOA

19/02/2020 04h00

Esta semana conversava com um amigo de infância, que é como um irmão pra mim. Falávamos, dentre outras coisas, do desafio de estar à frente de uma equipe e ter atitudes que contribuam para a empresa e para o bem-estar dos funcionários, ao mesmo tempo. Aliás, a conversa começou meio que ele dizendo algo como "cara, dá umas dicas aí sobre como posso ser um bom líder". Feliz decisão que tive de, ao invés de compartilhar minha experiência com gestão e desenvolvimento de pessoas, escolher escutar a experiência dele.

Trabalhando nessa empresa há cerca de um ano e meio, já com uma bagagem de mais de dez anos na área de tecnologia, esta é sua primeira empreitada saindo da área operacional e sendo desafiado a gerenciar uma equipe. Equipe essa composta por sete pessoas, de diferentes níveis de conhecimento, e responsável pelo desenvolvimento do principal produto da empresa.

Ele, que nomearei a partir de agora como Márcio, me contou algumas histórias de como tem sido o desafio de liderar uma equipe responsável por manter uma estrutura multimilionária em bom funcionamento e cada vez melhor. Das dificuldades e estresses de estar a frente de um desafio que parece ser maior que sua capacidade de lidar com ele. E do prazer de abraçar esse desconhecido e atingir os resultados que vem obtendo. Sem diploma de faculdade e nunca tendo frequentado sequer um curso de gestão, adentrando um ambiente onde títulos e papéis teimam em ditar quem somos, trazendo uma necessária provocação.

Compartilho com você uma das histórias que ele me contou, que ficou ecoando por aqui.

Use seu poder a serviço da transformação

Márcio recebeu uma cobrança de um dos gerentes de outra área, que é cliente interno de seu time. Esse gerente expressava descontentamento com sua atitude de solicitar que algumas pessoas do time reservassem parte do tempo do trabalho para estudar alguns temas que seriam necessários para melhorar a qualidade do produto e, consequentemente, o resultado da empresa. Na cabeça do gerente, estas pessoas são pagas para trabalhar e não para estudar no horário de trabalho. Se for para estudar, que seja fora do horário produtivo e sem receber por isso.

Numa discussão um tanto calorosa com esse gerente, Márcio nomeia que um dos problemas da empresa é justamente o fato de só valorizarem as pessoas quando convém. Na hora de fazer hora extra, tudo certo e são os melhores funcionários. Na hora que estudam para fazer algo bacana, estão perdendo tempo e deveriam ser 'mais produtivos'. E pontua a baixa retenção de profissionais qualificados, que trocam a empresa por falta de um olhar mais humanizado para eles.

Um tanto abusado (gosto disso, na real), Márcio pontua que está tudo bem o desconforto de seu cliente interno e que não vai mudar sua perspectiva de atuação centrada nas pessoas. Se for para mudar e enxergar as pessoas como máquinas, que o diretor da empresa (ou CEO, pra quem gosta de falar bonito) venha e mande-o embora, pois não fará mais sentido para ele estar ali.

Como resultado dessa política que Márcio adotou, o time continua mais motivado ainda e entregando resultados que impressionam a empresa. Inclusive, sendo considerado um time de destaque ali dentro. Detalhe adicional: recebeu carta branca para escolher a melhor forma de lidar com seu time para continuarem entregando os resultados esperados.

Aprendizados, esperanças e muito trabalho pela frente

Não é fácil tomar a decisão de olhar para o bem-estar das pessoas em ambientes onde se vive falando de produtividade e espremer até a última gota é a regra. Qualquer olhar diferente deste padrão mecanicista corre o risco de soar utópico e inadequado, incompatível com uma cultura de que 'a fila anda e quem está aqui precisa mostrar serviço a todo custo'.

Felizmente, há pessoas em posições hierárquicas com poder de escolha, como no caso de Márcio, que topam assumir esse risco e ousar fazer diferente. Que são resistência diante de um sistema de opressão. Afinal, nesses ambientes, posicionar-se é uma potente ação de transformação.

Talvez, ainda são poucas as pessoas que assumem esse lugar de resistência e transformação, diante da massa crítica que precisamos para integrar no inconsciente coletivo uma nova forma de se relacionar que seja mais saudável para empresas, funcionários e sociedade. Nem por isso, essa transformação é inexistente. Ela ocorre, silenciosamente, em cada atitude como essa de Márcio. Cabe a cada um de nós continuar a contar e viver novas histórias, na medida de nossas possibilidades.

E começo a pensar naquele primeiro pedido que ele me fez: "cara, dá umas dicas aí sobre como posso ser um bom líder". A única coisa que me vem em mente, é responder aquilo que ele me ensinou nessa conversa, talvez sem sequer perceber essa qualidade em si mesmo.

Rapaz, você já é um bom líder. Ao ter um olhar sensível e humano para o que cada pessoa é. Ao sustentar um espaço de desconforto e conflito para manter seus princípios, ainda que correndo o risco de ser mandado embora. Ao olhar para os resultados que esperam de você, sem deixar de olhar para aqueles que com você trabalham.

Do mais, posso te passar uma tonelada de leituras e vídeos, de possíveis cursos que vão trazer bagagem pra somar na sua experiência a partir de agora. Mas, aquilo de mais precioso, que muita gente que passou por grandes universidades, viajou o mundo e trabalhou em grandes corporações, e talvez não percebeu, você ensina no seu viver: De que vale ganhar o mundo, e perder sua alma?

A liderança que mais me inspira é aquela que existe de forma consciente e a serviço de um bem-estar integral. De si, da empresa, daqueles que dela fazem parte, da sociedade. E essa liderança, você não só tem, como transborda.

Sobre o autor

Sérgio Luciano é empreendedor e atua com a promoção da empatia e diversidade como caminho para a construção de relações mais saudáveis. Intrigado pela complexidade das relações de poder e privilégio numa sociedade, tem se aprofundado nesse tema pelo olhar Processwork, uma abordagem terapêutica derivada da psicologia junguiana voltada para mediação de conflitos, facilitação de grupos e autoconhecimento. Também é especialista em comunicação não-violenta e atende organizações e pessoas físicas no Brasil e no exterior.

Sobre o blog

Criar condições para um mundo mais humano e acolhedor para todas e todos passa também por ressignificar as relações no ambiente de trabalho e entre organizações e sociedade, buscando novas formas de produzir e se relacionar. Às vezes essas novas possibilidades são desafiadoras às nossas crenças e ao sistema atual, mas nem de longe são impossíveis. Tudo começa a partir da escolha individual de mudar hábitos, visões de mundo e comportamentos.